O corpo lembra: a neurofisiologia do trauma
O CORPO LEMBRA: A NEUROFISIOLOGIA DO TRAUMA?
José Henrique Volpi (1)
RESUMO:
O artigo investiga a conexão entre corpo e mente na vivência do trauma, unindo a Psicologia Corporal de Wilhelm Reich e Alexander Lowen às descobertas recentes da neurociência. Discute as mudanças cerebrais e fisiológicas causadas por experiências traumáticas, como a hiperatividade da amígdala e a disfunção do sistema nervoso autônomo. Com base em pesquisas de autores como Bessel van der Kolk, Stephen Porges e Peter Levine, conclui-se que o tratamento efetivo do trauma exige intervenções somáticas que favoreçam a reintegração entre corpo e mente, a autorregulação emocional e a recuperação da vitalidade.
Palavras-chave: Corpo. Mente. Neurociência. Psicologia corporal. Trauma.
Publicado em: 30/10/2025
Páginas: 90 – 96
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Introdução
Os progressos na neurociência e na psicologia somática demonstram que o trauma afeta não só a mente, mas também o corpo. Pesquisas indicam modificações em áreas cerebrais fundamentais, como a amígdala, hipocampo e córtex pré-frontal, bem como alterações no sistema nervoso autônomo (KOLK, 2020; PORGES, 2011).
A Psicologia Corporal, fundamentada nos princípios da couraça muscular de Reich (1973) e nas técnicas da Análise Bioenergética de Lowen (1975), propõe uma metodologia terapêutica para acessar memórias corporais, aliviar tensões crônicas e favorecer a autorregulação emocional (BOADELLA, 1991; BERNHARD, 2007). Este artigo sugere uma combinação dessas abordagens com dados neurobiológicos atuais.
O que é trauma?
Trauma é uma resposta desregulada do organismo a uma ameaça percebida como avassaladora, sendo seu impacto mais relevante do que o evento em si (KOLK, 2020).
Estudos em neurociência e psicologia corporal mostram que diferentes tipos de experiências traumáticas podem levar a manifestações corporais e neurológicas específicas. Em situações de abuso físico ou sexual, é comum observar um aumento da tensão muscular crônica, juntamente com dificuldades respiratórias e rigidez postural. Esses mecanismos estão relacionados à ativação contínua do sistema de defesa do corpo (REICH, 1973; VAN DER KOLK, 2020). Neurologicamente, esses acontecimentos estão ligados à hipervigilância constante e à diminuição do volume do hipocampo, área cerebral encarregada da consolidação das memórias e da regulação do estresse (VAN DER KOLK, 2020; PORGES, 2011).
Casos de negligência emocional ou abandono, particularmente na infância, geralmente se manifestam fisicamente por meio de posturas encurvadas, fraqueza muscular e redução da tonicidade corporal, sinalizando um padrão de colapso tanto fisiológico quanto emocional. Essas condições podem estar ligadas a uma disfunção do córtex pré-frontal, região encarregada do controle emocional e da tomada de decisões, resultando em problemas de autorregulação e de vínculo afetivo (LEVINE, 2010; PORGES, 2011).
Por outro lado, acidentes graves ou desastres naturais costumam gerar respostas somáticas intensas, como palpitações, sudorese e tremores involuntários, decorrentes da hiperatividade da amígdala. Essa estrutura cerebral está envolvida na detecção de ameaças e nas respostas de luta, fuga ou congelamento (VAN DER KOLK, 2020; MAROTI et al., 2022). Quando não são integradas, essas reações podem se tornar crônicas, mantendo o corpo em um estado de alerta e tensão muscular que caracteriza o trauma.
Dessa forma, cada tipo de experiência traumática deixa no corpo e no sistema nervoso uma forma particular de registro e resposta, comprovando que o trauma é um fenômeno tanto neurofisiológico quanto somático. Isso requer abordagens terapêuticas que considerem essa conexão entre corpo, cérebro e emoção (REICH, 1973; LOWEN, 1975; VAN DER KOLK, 2020).
Corpo e cérebro: a fisiologia do trauma
O trauma reconfigura os circuitos neurais e modifica as respostas autonômicas. Os progressos na neurociência têm mostrado que o trauma psicológico causa mudanças estruturais e funcionais em várias regiões do cérebro, impactando diretamente a maneira como a pessoa percebe e reage ao mundo. A amígdala, o hipocampo e o córtex pré-frontal são algumas das principais estruturas afetadas, cujas funções passam por mudanças consideráveis após vivências traumáticas intensas.
Em pessoas que sofreram traumas, a amígdala — responsável pela detecção de ameaças e ativação de respostas defensivas — costuma mostrar uma hiperatividade constante. Essa condição mantém o organismo em um estado de alerta constante, resultando em hipervigilância, reatividade emocional e problemas para diferenciar situações seguras de perigosas (VAN DER KOLK, 2020; PORGES, 2011).
Em casos de trauma crônico, o hipocampo, que é responsável pela consolidação das memórias e pela contextualização temporal das experiências, geralmente apresenta uma redução em seu volume e funcionamento irregular. Essa mudança afeta a habilidade de distinguir passado e presente, fazendo com que a pessoa reviva memórias traumáticas como se fossem atuais (BREMNER, 2006; VAN DER KOLK, 2020).
Em contrapartida, o córtex pré-frontal, região ligada à regulação emocional, planejamento e controle do comportamento, costuma mostrar uma atividade diminuída, o que dificulta a modulação das respostas emocionais produzidas pela amígdala. Essa disfunção está relacionada à desregulação emocional, impulsividade e problemas em manter a calma e a autorregulação (SHIN; LIBERZON, 2010; PORGES, 2011).
Essas evidências demonstram que o trauma é tanto um fenômeno psicológico quanto neurofisiológico, indicando um desequilíbrio na interação entre as áreas subcorticais e corticais do cérebro. Para o processo terapêutico e a recuperação da estabilidade emocional, é fundamental restabelecer a integração entre essas áreas (VAN DER KOLK, 2020; LEVINE, 2010).
O sistema nervoso autônomo regula funções como respiração, frequência cardíaca e tônus muscular. A Teoria Polivagal explica que estados crônicos de luta, fuga ou congelamento surgem como adaptações traumáticas (PORGES, 2011).
Figura 1 – Fluxo de resposta autonômica ao trauma
Evento traumático → Ativação da amígdala → Hiperatividade simpática → Resposta luta/fuga ↓
Congelamento → Ativação do nervo vago dorsal
Psicologia Corporal e trauma
Wilhelm Reich (1973) notou que as tensões musculares persistentes, que ele chamou de “couraça muscular”, atuam como defesas inconscientes formadas pelo corpo para reter emoções suprimidas e vivências traumáticas. Posteriormente, Alexander Lowen (1975) expandiu essa ideia ao criar a Análise Bioenergética, enfatizando a conexão entre bloqueios energéticos, expressão emocional e vitalidade do corpo.
Essas tensões podem aparecer em várias partes do corpo, e cada uma delas indica um aspecto particular da história emocional da pessoa. É comum sentir rigidez e dores crônicas na região do pescoço e dos ombros, geralmente ligadas à contenção emocional e ao esforço para “suportar” responsabilidades em excesso. Intervenções psicocorporais focadas nessa área englobam alongamentos, mobilização articular e respiração direcionada, visando restaurar a flexibilidade e o fluxo energético (LOWEN, 1975; BERNHARD, 2007).
No tronco e diafragma, é comum notar uma respiração superficial, um padrão típico em pessoas que sentem medo, ansiedade ou reprimem emoções. Essa restrição respiratória diminui a conexão com as próprias sensações e sentimentos. Nesse contexto, a intervenção terapêutica visa reeducar o padrão respiratório por meio de exercícios de respiração profunda e consciente, o que ajuda a liberar tensões acumuladas e aumentar a vitalidade (BOADELLA, 1991; BERNHARD, 2007).
É frequente encontrar tensões musculares e problemas de mobilidade na área do quadril e das pernas, que representam resistência ao movimento e obstrução do impulso de agir ou progredir na vida. Nesse cenário, a bioenergética sugere a utilização de movimentos expressivos e posturas de enraizamento, possibilitando que a pessoa reconecte-se com seu corpo e com o ambiente ao redor, aumentando a sensação de segurança e presença (LOWEN, 1975; BERNHARD, 2007).
Assim, a Psicologia Corporal concentra-se em acessar as memórias corporais e facilitar a reintegração funcional do corpo, integrando os elementos emocionais, energéticos e fisiológicos. Essa metodologia visa recuperar a autorregulação emocional e neurofisiológica, possibilitando que o corpo retorne a pulsar com mais liberdade e autenticidade (BERNHARD, 2007; BOADELLA, 1991).
Evidências científicas de intervenções somáticas
Nas últimas décadas, pesquisas têm mostrado a efetividade das terapias somáticas na diminuição de sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), ansiedade e depressão, destacando a relevância de incorporar o corpo ao processo psicoterápico (MAROTI et al., 2022). As evidências sugerem que o tratamento do trauma não deve ser limitado à narrativa cognitiva ou verbal, mas deve incorporar técnicas que ajustam o tônus muscular, a respiração e a percepção corporal, conforme destaca Van der Kolk (2020).
A respiração consciente é uma das intervenções mais pesquisadas e ajuda a diminuir a hiperatividade simpática, que é o estado fisiológico de alerta constante frequentemente observado em sobreviventes de trauma. Estudos em neurociência mostram que o controle da respiração afeta diretamente a regulação do sistema nervoso autônomo, ativando o nervo vago e ajudando a restaurar estados de calma e segurança (PORGES, 2011; VAN DER KOLK, 2020; MAROTI et al., 2022).
O movimento expressivo é outra técnica bastante usada, que ajuda a liberar tensões físicas e bloqueios emocionais. Essa técnica, que tem suas raízes nas teorias de Reich e foi aprofundada por Lowen (1975), possibilita que o corpo recupere sua habilidade de pulsar e se mover de forma espontânea, promovendo a integração entre emoção, respiração e postura (BERNHARD, 2007; LOWEN, 1975).
A bioenergética, introduzida por Lowen (1975) e expandida por Boadella (1991), também demonstra resultados relevantes no incremento da vitalidade e da consciência corporal. Esta técnica visa restaurar o fluxo energético natural do corpo e aumentar a autorregulação psicofisiológica por meio de exercícios específicos que envolvem respiração, expressão emocional e contato com o chão (“grounding”) (BOADELLA, 1991; BERNHARD, 2007).
Essas perspectivas apoiam a ideia de que a cura do trauma exige a participação ativa do corpo no processo terapêutico. Ao reconectar-se à experiência somática de maneira segura e gradual, o paciente pode reestruturar os circuitos neurais de defesa e recuperar a habilidade de sentir, expressar e confiar — elementos essenciais para a recuperação de traumas (VAN DER KOLK, 2020; PORGES, 2011).
Conclusão
A conexão entre a neurociência atual e a Psicologia Corporal valida que o trauma é um fenômeno psicossomático no sentido mais abrangente da palavra: corpo e mente formam um sistema único, em diálogo constante. Os traumas se manifestam tanto nas estruturas cerebrais — como a amígdala, o hipocampo e o córtex pré-frontal — quanto nos músculos, na respiração, na postura e nas expressões emocionais (BREMNER, 2006; VAN DER KOLK, 2020; PORGES, 2011).
A contribuição de Wilhelm Reich é essencial para essa compreensão. Reich (1973) afirmava que as experiências emocionais reprimidas se manifestam no corpo como tensões musculares crônicas, a que chamou de “couraça muscular”, já nas décadas de 1930 e 1940. De acordo com o autor, essa couraça não só simboliza uma defesa psicológica, como também forma uma memória corporal inconsciente que influencia o fluxo energético, a respiração e o comportamento. Em outras palavras, Reich previu, com base empírica e clínica, o que a neurobiologia do trauma atualmente caracteriza como disfunções na autorregulação autonômica e na integração entre cérebro e corpo (PORGES, 2011; VAN DER KOLK, 2020).
Com base nesse fundamento, Alexander Lowen (1975) ampliou os conceitos reichianos ao criar a Bioenergética, estabelecendo técnicas corporais para liberação emocional e reintegração somática. Décadas mais tarde, autores como Bessel van der Kolk (2020) e Stephen Porges (2011) apresentaram os fundamentos neurofisiológicos que explicam cientificamente os mecanismos que Reich observou clinicamente. Esses mecanismos incluem a função da respiração, do tônus muscular e da expressão corporal na regulação do sistema nervoso. Portanto, pode-se dizer que Reich estabeleceu as bases do que hoje conhecemos como neurociência somática do trauma, mesmo que sua linguagem e contexto histórico não fossem científicos no sentido atual.
A abordagem corporal reichiana também estabeleceu uma ética clínica que considera o corpo como sujeito, e não somente como objeto de intervenção terapêutica. Esse conceito permanece fundamental nas abordagens contemporâneas, que vêem no corpo o espaço para a experiência, a defesa e a cura. Ao incorporar os conhecimentos da neurociência contemporânea, a Psicologia Corporal fortalece a perspectiva reichiana de que a saúde emocional está ligada à livre circulação da energia, à respiração completa e à expressão natural das emoções (REICH, 1973; BOADELLA, 1991; BERNHARD, 2007).
Assim, o legado de Reich vai além de sua época: suas ideias inovadoras sobre a ligação entre corpo, emoção e energia vital são apoiadas empiricamente pelas descobertas atuais sobre trauma e regulação autonômica. Desse diálogo entre tradição e ciência, emerge uma visão integrativa e humanista, na qual o corpo deixa de ser apenas um suporte para a mente e passa a ser o protagonista da experiência e do processo terapêutico.
Em resumo, entender que “o corpo lembra” é reconhecer a profundidade da perspectiva reichiana — uma abordagem que integrou psicologia, biologia e ética da vitalidade. Com novos instrumentos e linguagem, a ciência de hoje apenas valida o que Reich pressentiu há quase um século: o corpo é o registro vivo das emoções humanas e a chave para a verdadeira cura.
Referências
BERNHARD, Alice. Psicoterapia corporal e o corpo energético: Reich revisitado. São Paulo: Summus, 2007.
BOADELLA, David. Correntes da vida: energia e padronização no corpo humano. São Paulo: Summus, 1991.
BREMNER, J. Douglas. Traumatic stress: effects on the brain. Dialogues in Clinical Neuroscience, v. 8, n. 4, p. 445–461, 2006.
KOLK, Bessel van der. O corpo guarda as marcas: cérebro, mente e corpo na cura do trauma. Rio de Janeiro: Sextante, 2020.
LEVINE, Peter. Waking the Tiger: Healing Trauma. Berkeley: North Atlantic Books, 2010.
LOWEN, Alexander. Bioenergética. São Paulo: Summus, 1975.
MAROTI, Daniel et al. Internet-based emotional awareness and expression therapy for somatic symptom disorder: a randomized controlled trial. Journal of Psychosomatic Research, v. 163, p. 111068, dez. 2022.
Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.jpsychores.2022.111068. Acesso em: 29 out. 2025.
PORGES, Stephen W. The Polyvagal Theory: Neurophysiological Foundations of Emotions, Attachment, Communication, and Self-regulation. New York: W. W. Norton & Company, 2011.
REICH, Wilhelm. A função do orgasmo. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
SHIN, Lisa M.; LIBERZON, Israel. The neurocircuitry of fear, stress, and anxiety disorders. Neuropsychopharmacology, v. 35, n. 1, p. 169–191, 2010.
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(1) José Henrique Volpi – Psicólogo (CRP-08-3685), Especialista em Psicologia Clínica, Anátomo-Fisiologia, Hipnose Ericksoniana, Psicodrama e Brainspotting. Psicoterapeuta Corporal Reichiano, Analista psico-corporal Reichiano formado com o Dr. Federico Navarro (Vegetoterapia e Orgonoterapia). Especialista em Acupuntura clássica e Método Ryodoraku (eletrodiagnóstico computadorizado de medição da energia dos meridianos do corpo). Mestre em Psicologia da Saúde. Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento. volpi@centroreichiano.com.br
VOLPI, José Henrique. O corpo lembra: a neurofisiologia do trauma. In: VOLPI, J. H.; VOLPI, S. M. (orgs.). Revista Científica Eletrônica de Psicologia Corporal. Curitiba: Centro Reichiano, v. 26, p. 90–96, 2025. ISSN 3086-1438. Disponível em: https://centroreichiano.com.br/revista-cientifica-eletronica-de-psicologia-corporal-vol-26-ano-2025/. Acesso em: _____.