Considerações sobre a etapa fálica: uma análise do desenvolvimento psicosexual em Reich

CONSIDERAÇÕES SOBRE A ETAPA FÁLICA: UMA ANÁLISE DO DESENVOLVIMENTO PSICOSEXUAL EM REICH

Thiago Staibano Alves
José Henrique Volpi

RESUMO

Apesar de ter começado sua carreira como analista dentro da Psicanálise Freudiana, Wilhelm Reich afastou-se de alguns conceitos desta em relação tanto à técnica psicoterapêutica como à teoria. Assim, apesar de ainda utilizar alguns pressupostos freudianos em seus últimos desenvolvimentos teóricos, estes assumem um caráter diferente do que têm na teoria freudiana e pós-freudiana. A etapa fálica do desenvolvimento psicossexual, desta forma, pode ser analisada dentro de um outro prisma do que aquele da psicanálise tradicional, proporcionando, inclusive, um diálogo entre a teoria reichiana e as atuais teorias feministas e de gênero.

Palavras-chave: Feminismo. Gênero. Marxismo. Reich. Transexualidade. 

Publicado em: 09/07/2023
Páginas: 6 – 11
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A teoria reichiana, desde o início, sempre se destacou da Psicanálise tradicional Freudiana, mesmo quando seu criador (Wilhelm Reich), ainda se encontrava no seio do movimento psicanalítico. Tanto em relação à técnica, com o desenvolvimento da Análise do Caráter, exigindo do terapeuta uma postura mais ativa no apontamento e trabalho com as defesas do ego do analisado, como em relação à teoria, com, por exemplo, sua visão em relação ao papel da relação sexual e da potência orgástica para a manutenção da saúde, Reich já vinha se diferenciando de vários psicanalistas de sua época, que, ou ainda seguiam o axioma de Freud de trabalhar com o material analítico na ordem em que aparecia sem levar em consideração as defesas e preparo do ego para entender tais interpretações, ou que ainda viam na sublimação e não na atividade sexual, a melhor forma de dar vazão às pulsões genitais (REICH,1998).

Além destas diferenças fundamentais com a teoria clássica freudiana, que viriam, junto com outros questionamentos, levar ao seu afastamento da teoria psicanalítica, Reich, desde o começo de seu trabalho, encontrava dentro da teoria Marxista uma fundamentação importante para entender a criação, manutenção e conflitos dos tipos de caráter que encontrava em seus pacientes, e suas relações com as estruturas sociais e econômicas de uma determinada época.

Como cita Reich, na Análise do Caráter:

A estrutura socioeconômica da sociedade determina modos definidos de vida familiar, mas estes não só pressupõem formas definidas de sexualidade como também as produzem, na medida em que influenciam a vida pulsional da criança e do adolescente, do que resultam mudanças de atitudes e de modos de reação. (REICH, 1998, p.7)

Desta forma, a família, que é onde se realizam as primeiras trocas sociais da criança, é fundamental no seu desenvolvimento psicológico, e em como suas pulsões e sexualidade serão definidas e desenvolvidas. Ora, sendo a estrutura e modos de vida familiares definidos pela estrutura socioeconômica de uma sociedade, podemos dizer que a família é um reflexo desta mesma estrutura social, e que através da família, a sociedade exerce sua influência sobre a vida psíquica da criança (REICH, 1998).

A influência Marxista em Reich fica mais evidente na obra As Origens da Moral Sexual (2013), na qual Reich cita diretamente Marx:

De acordo com Marx e Engels, os interesses e conflitos de classe determinam a nossa existência atual […] Marx defendia que as condições materiais de existência determinam os conceitos morais, e este fato era claramente confirmado pela experiência cotidiana (REICH, 2013, p.14-15)

É este embasamento Marxista que levará Reich, nesta mesma obra, a questionar os resultados obtidos pela expedição do psicanalista húngaro Reza Roheim, ao estudar alguns povos da Austrália e da Nova Guiné, em 1929. Segundo Reich (2013), esta expedição teve como objetivo validar alguns dos conceitos psicanalíticos como a universalidade biológica do Complexo de Édipo, mesmo em sociedades matriarcais, universalidade que era questionada pelas teorias do antropólogo Malinowski, frequentemente citado por Reich nesta obra (REICH, 2013).

Em um dos questionamentos de Reich às conclusões de Roheim, ele expõe sua visão da origem do medo da castração como sociológica, e não fundamentada biologicamente como achava Roheim e a psicanálise freudiana.

Reich escreve:

Apresentei motivos sociológicos para a origem do medo da castração que destrói as nossas crianças e adolescentes tanto a nível corporal como a nível psicológico […]. O fato de poderem existir estruturas de caráter que não comportem um medo da castração, não ocorre a Roheim, visto que ele considera que este medo tem uma base biológica (REICH, 2013, p.207)

Desta forma, o medo da castração, que será a base e núcleo para a formação daquilo que é conhecido na teoria psicanalítica como Complexo de Castração, não teria, para Reich, uma base universal biológica, mas sim, possivelmente, uma determinação social, baseada na organização de uma determinada sociedade. 

Esta determinação sociológica não universal propicia uma mudança na forma como podem ser vistos o desenvolvimento dos processos que ocorrem naquela que é conhecida como Etapa Fálica do desenvolvimento Psicossexual, que para Volpi (2022) também é conhecida como Etapa de Identificação (pois é nela que se formam as identificações de gênero), já que é nela que o Complexo de Castração se manifesta tanto nos meninos como nas meninas.

A importância que a castração tem, por exemplo, na formação da identidade da menina nesta fase, é bem descrita por Freud (apud. Volpi, 2011):

Elas [as meninas], notam o pênis de um irmão ou companheiro de brinquedo, notavelmente visível e de grandes proporções, e imediatamente identificam como o correspondente superior de seu próprio órgão pequeno e imperceptível; dessa ocasião em diante, caem vítimas da inveja do pênis. (FREUD, 1987a, p.155-162)

A partir daí, segundo Freud (apud. Volpi, 2011) a menina pode seguir alguns caminhos em seu desenvolvimento, sendo que um deles levaria à uma “feminilidade normal”, com Freud (apud. Volpi, 2011) indicando que as meninas sentem (1987b, p.155-162): “necessidade de valorizar seus encantos, do modo mais evidente, como uma tardia compensação por sua inferioridade sexual”.

Como bem indica VOLPI (2011), a visão da psicanálise tradicional em relação à criação das identidades sexuais na Fase Fálica ou de Identificação vê no masculino uma superioridade em relação ao feminino. Isto é bem explicado por Preciado (2022, p.74), ao se referir, que mesmo na psicanálise Lacaniana, há ainda um: “’significante’ da sexuação que divide todos os seres em masculinos e femininos”. Este significante é o Falo, sendo que a identidade feminina é aquela que não o possui, sendo assim, castrada.

Desta forma, a identidade do sujeito feminino seria uma identidade pautada pela falta, a ausência de algo que, mesmo se for interpretado na ordem do registro simbólico lacaniano, pela sua presença ou ausência, é fundamental para a criação das identidades sexuais. Esta visão da Psicanálise foi fortemente criticada por integrantes do movimento feminista por dar primazia ao Falo no processo de sexuação, o que coloca a mulher sempre na posição de um sujeito faltante e subordinada ao homem em relação à sua identidade.

Aqui, a crítica que Reich faz a Roheim quanto a universalidade do medo da castração pode se colocar como um contraponto à teoria da sexuação da Psicanálise, alinhando-se de certo modo às críticas mais recentes às teorias freudiana e lacaniana, possibilitando uma identidade feminina que não seja pautada na ausência do Falo e “inveja do pênis”. Pois, se este medo é oriundo de um determinado tipo de organização social e econômica de uma sociedade que foi criada historicamente, como postula Reich (2013), a mudança das condições econômica e sociais (desta sociedade analisada por Freud, no fim do século XIX e começo do XX) possibilitaria a criação de um sujeito feminino que não tem, na sua identidade, a falta vinda da castração. Além, precisamos lembrar que como diz Reich, mais uma vez citando a teoria Marxista: “os interesses de classe determinam a nossa existência atual, bem como nossa filosofia e nossa pesquisa; por trás da sua objetividade, há o interesse de classe”*(REICH, 2013, p.14). Neste sentido, a própria teoria da sexuação de Freud, continuada por Lacan, mesmo que não propositalmente, pode ser entendida como uma reprodução de um “interesse da classe dominante”, a saber a continuidade do papel de inferioridade da mulher (e demais minorias sexuais) e da produção de sua própria identidade enquanto sujeita ao homem. Aqui, podemos citar Preciado, que ao comentar sobre teoria da sexuação Lacaniana diz: “Minha hipótese é que Lacan não consegue se desvencilhar do binarismo sexual por conta de sua própria posição no interior do patriarcado heterossexual como regime político” (PRECIADO, 2022, p.67-68).

Identidades Trans

Aquilo que é entendido como heteronormatividade, vê, como indica Volpi (2011), a sexualidade e a genitalidade unicamente como tendo funções reprodutivas. Para exercer este papel reprodutivo da sexualidade e genitalidade, há a necessidade de uma identidade cis e uma orientação hétero. Dentro desta visão, aquelas identidades trans, não binárias, ou orientações não hétero seriam vistas como patológicas, já que não possibilitariam o exercício das “funções sexuais” com o objetivo reprodutivo.

Reich deixa claro em A Função do Orgasmo, que pelos seus estudos e observações clínicas, via na sexualidade uma função que não se reduzia à reprodução. Reich cita, por exemplo, como veio a entender que a Psicanálise Freudiana mantinha a antiga relação entre sexualidade, genitalidade e reprodução:

Freud afirmara que o desenvolvimento da libido na criança progredia do estágio oral para anal e do anal para o fálico. […] Era somente na puberdade, segundo Freud, que as excitações sexuais infantis se subordinavam à “primazia genital”, que então “começava a desempenhar a função procriativa”. Esta formulação conservava a antiga identificação entre genitalidade e procriação, continuando o prazer genital a ser considerado como uma função da procriação. Não consegui ver isso, no início. (REICH, 2012, p.115) 

Se há uma crítica da relação conceitual entre a sexualidade, genitalidade e as funções reprodutivas, e se a sexualidade e a genitalidade são vistas, como pensa Reich (2012), como uma forma de liberação da energia biológica a fim de manter o equilíbrio e economia sexuais e energéticos do organismo, e não como uma forma de se levar à reprodução da espécie (mesmo que ela também venha a ocorrer por esta mesma função), pode-se abandonar o  comprometimento lógico e teórico da teoria reichiana com os padrões heteronormativos, sejam quanto a identidades ou orientações sexuais, já que, como explicado anteriormente, a heteronormatividade necessita e pressupõe, a fim de existir teórica e ideologicamente, da interpretação da sexualidade e genitalidades como existentes para a finalidade da reprodução da espécie. 

Além, a crítica que Reich faz da universalidade biológica do Complexo de Castração, abre a possibilidade, dentro da teoria reichiana, de que na Etapa de Identificação possam ocorrer identificações sexuais que não estejam pautadas na dicotomia castrado-não castrado, ou presença-ausência do Falo, permitindo assim uma gama de identificações de gênero que fujam da binaridade homem-mulher sem o imperativo de serem interpretadas como patológicas como a teoria freudiana clássica faria. Assim, mesmo que Reich não tenha percebido em sua época a relação entre a heteronormatividade, sexualidade reprodutiva e o binarismo que o Complexo de Castração impõem à Psicanálise (talvez devido a incipiência dos estudos de gênero na primeira metade do século XX), há a possibilidade dentro do arcabouço teórico deixado por Reich e dos estudos de gênero atuais, em ver as identidades e orientações não heteronormativas (trans, não binários, homo, bi, pan, entre outras) como não patológicas e não inferiores às identidades e orientações cis héteros.

REFERÊNCIAS

REICH, Wilhelm. Análise do Caráter. 3ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

REICH, Wilhelm. As Origens da Moral Sexual. 1ª Edição. Curitiba: Centro Reichiano & Volpi, 2013.

REICH, Wilhelm. A Função do Orgasmo. 19ª Edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012.

VOLPI, José Henrique; VOLPI, Sandra Mara. Etapas do desenvolvimento emocional. In: VOLPI, J. H.; VOLPI, S. M. (Org.) Apostila do curso de Especialização em Psicologia Corporal. Módulo 1, Unidade 2. Curitiba: Centro Reichiano, 2022. Acesso em: 02/07/2023.

VOLPI, Sandra Mara. Reflexões sobre sexualidade, corpo, relações de gênero e caráter. In: VOLPI, José Henrique; VOLPI, Sandra Mara (Org.). Anais. 3ª JORNADA INTERESTADUAL DE PSICOTERAPIAS CORPORAIS. Balneário Camboriú/SC. Centro Reichiano, 2011. [ISBN – 978-85-87691-20-0]. Acesso em: 02/07/2023.

FREUD, S. Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XIX, 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987a. p. 303-320. 

FREUD, S. Conferência XXXIII de Novas conferências introdutórias sobre Psicanálise. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XXII, 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987b. p. 139-165.

PRECIADO, P.B. Eu sou o monstro que vos fala: Relatório para uma academia de psicanalistas. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

ALVES, Thiago Staibano; VOLPI, José Henrique. Considerações sobre a Etapa Fálica: Uma Análise do Desenvolvimento Psicosexual em Reich. In: VOLPI, J. H.; VOLPI, S. M. (org.). Revista Científica Eletrônica de Psicologia Corporal. Curitiba: Centro Reichiano, v. 24, p. 6-11, 2023. ISSN 3086-1438. Disponível em: https://centroreichiano.com.br/revista-cientifica-eletronica-de-psicologia-corporal-vol-24-ano-2023/. Acesso em: _____.

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