O EDÍFICIO HUMANO: ENTRE NÚCLEOS, ANDARES E COBERTURAS
Luiz Guilherme Sant’Angelo (1)
José Henrique Volpi (2)
RESUMO
O fazer da clínica psicorporal tem seu fundamento na caracterologia reichiana. Federico Navarro sistematiza e inova ao propor uma caracterologia pós-reichiana, desenvolvendo conceitos como núcleo e cobertura. Faz diferenciações importantes entre caráter, temperamento e caracterialidades. Ao longo de sua teoria, o autor vai tecendo os tipos caracteriais, como os orais, compulsivos, fálicos, masoquistas, histéricos e genital, mas ressalta que não existe um tipo puro e sim uma estratificação das camadas caracteriais. Introduzimos a noção que Maria de Melo faz, na apresentação do livro de Genovino Ferri “O tempo no corpo” sobre o edifício humano, apostando numa melhor visualização do leitor, sobre a proposta de Navarro, de uma caracterologia pós Reich.
Palavras-chave: Caráter. Clínica. Desenvolvimento. Navarro. Psicologia. Reich.
Publicado em: 08/04/2024
Páginas: 21 – 27
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A linguagem dos traços é uma meta linguagem sobre a linguagem verbal e a linguagem corporal e as inclui, ela nos permite ler a pessoa e a sua trajetória evolutiva com seus pensamentos de traço, a sua inteligência de traço, o seu nível corporal, terreno dos padrões de traço” (FERRI, 2014, p. 212 apud. FERRI, 2022, p. 26)
A fundamentação teórica e clínica da psicologia corporal é densa quanto aos conceitos, disciplinas e manejos que a compõem, pois, faz intersecção com várias áreas do conhecimento como a fisiologia, neurociências, psicologia, política, psicanálise e tantas outras. Essa intersecção permite um fazer clínico coeso, consistente e refinado, visto que o ser humano é um organismo bastante complexo.
Todos os elementos que constroem um setting terapêutico psicorporal são importantes, mas para esse ensaio destacamos a caracterologia pós-reichiana, proposta por Federico Navarro no livro “Caracterologia pós-reichiana”, de 1995, onde sistematiza os tipos caracterológicos estudados por Reich e traz novas compreensões sobre a psicodinâmica e o manejo clínico de acordo com o tipo de caráter. E, somando, trazemos para compor esse texto, a ideia que Maria de Melo (MELO, 2022, apud. FERRI, 2022) traz na apresentação do livro de Genovino Ferri “O tempo no corpo” sobre o edifício humano, além de outras contribuições do próprio autor.
Maria de Melo (MELO, 2022, apud. FERRI, 2022), baseada nas propostas de Ferri (2022) traz a noção de que o organismo humano se assemelha a um edifício, onde cada segmento ou nível reichiano, é um andar, um apartamento, não isolado, mas, que se comunicam uns com os outros. Esse organismo vai na flecha do tempo neguentrópica, na direção top down (de cima para baixo) por meio das fases do desenvolvimento psicossexual e no campo das relações humanas, forjando os traços de caráter (FERRI, 2022).
Desse modo, pesquisar e trabalhar a partir da caracterologia (pós) reichiana é um caminho sobre os andares do organismo psique-soma, como propõe Maria de Melo (MELO, apud. FERRI, 2022), assim também Navarro (1995) trilha uma anatomia física e emocional top down do alto da cabeça às plantas dos pés, de dentro do organismo para fora, nas relações humanas, explorando conceitos, amarrando-os à prática clínica e nos permitindo uma melhor compreensão do funcionamento caracterológico, caminhando entre os núcleos, andares e coberturas deste edifício.
Nos deteremos em alguns aspectos apontados por Navarro e à noção de edifício humano de Melo (MELO, 2022, apud. FERRI, 2022), mas ressaltamos a importância de se ler as obras na íntegra.
Uma diferenciação importante é a que Navarro (1995) faz entre caráter, temperamento e caracterialidade. Com temperamento designa-se “as particularidades fisiológicas e morfológicas que diferenciam os indivíduos […] das trocas químicas que se efetuam no organismo” (NAVARRO, 1995, p. 11). Caracterialidade são os “bloqueios dos níveis corporais” (NAVARRO, 1995, p.10) que formam o que chamamos de traço caracterial, que é a solução que a pessoa encontrou para evitar ou reprimir a angústia. Já por caráter podemos compreender o modo “habitual de agir e reagir de um indivíduo por intermédio de seu comportamento” (NAVARRO, 1995, p. 11).
Podemos perceber que ao fazer essas distinções, Navarro (1995) contrapõe uma corrente no campo psicorporal que sugere um caráter ocular, sendo Elsworth F. Baker, psiquiatra norte americano, um nome importante dessa visão, ao afirmar que não existe um caráter ocular, mas sim um estágio ocular, pois o psicótico não conseguiu constituir um “eu” para si. Para sustentar sua tese, Navarro (1995) compreende que o caráter só é possível com uma neuromuscularidade intencionada, que começa a se desenvolver próximo ao desmame, antes disso há apenas caracterialidade e não uma estrutura caracterológica bem definida, ou seja, seria incorreto propor um caráter antes de uma estruturação e sofisticação muscular.
A partir de Ferri (2022), podemos pensar que a vida intrauterina, seria a formação do fundamento do edifício, ainda não há paredes estruturais, mas uma base, quase puramente fisiológica, em que o organismo psique-soma irá ser construído ao decorrer da gestação e dos primeiros anos.
Nesses primeiros momentos da formação do edifício humano, os olhos, a pele e o encéfalo (1º segmento), são o centro desse período de construção e, certas frustrações envolvendo esses órgãos do corpo, podem levar à formação de um núcleo psicótico e um duplo núcleo psicótico. O primeiro – núcleo psicótico – teria sua gênese em uma frustração intrauterina ou logo nos primeiros dias de vida e o duplo núcleo psicótico surgiria de uma frustração no período da neuromuscularidade, início da caracterialidade (NAVARRO, 1995). Tal compreensão, pode auxiliar no manejo clínico, visto que para cada tipo de núcleo, seria importante uma intervenção por parte do terapeuta.
Seguindo nossa caminhada no edifício humano, depois de uma base formada no útero, o organismo inicia a formação de seus andares, tendo a boca e a base do encéfalo (2º segmento), como centro desse momento, que marca a oralidade. Reich falava de um caráter oral e Navarro (1995) sustentará que é preferível o termo aspectos caracteriais orais, pois, alegar um caráter oral é o mesmo que dizer que o indivíduo viveria uma depressão estável que o conduziria à morte, tal como na depressão anaclítica que acomete bebês nos seus primeiros meses de vida.
Na oralidade pode se formar também um núcleo, diferente do estágio ocular que fomenta um núcleo psicótico, aqui, temos um núcleo depressivo, gerado basicamente por uma frustração no aleitamento e no desmame (NAVARRO, 1995).
A depender da experiência de frustração, teremos um tipo caracterial oral insatisfeito, originada na falta de aleitamento, que desenvolverá tendência a compensar os sentimentos depressivos através da alimentação e uso de álcool e, o tipo oral reprimido, que se forma no desmame brusco e encontrará na raiva uma forma de se proteger da depressão nucleada.
Uma correlação que o autor faz é que a satisfação, o prazer e o amor são típicos da fase oral e que eles, ao longo do desenvolvimento psicossexual, deveriam ser deslocados para a nutrição, calor e amor. Navarro (1995) identifica também no caráter histérico traços de oralidade, afirmando que “[…] o histérico nutre a própria oralidade por meio da sexualidade […] biologicamente obtém da genitalidade, não o prazer, mas a alegria da satisfação” (NAVARRO, 1995, p.61).
Descendo pelo edifício humano, estaremos no terceiro e quarto andar, que tem sua localização no pescoço (3º segmento) e alto do tórax (4º segmento), respectivamente. Desde Reich, o pescoço é considerado a sede do narcisismo e do controle (self-control), pois, o desenvolvimento de autonomia do sujeito acompanha o sentido céfalo-caudal (VOLPI, 2024), momento em que a criança consegue sustentar a cabeça e coordenar (controlar) os movimentos do pescoço, acontece também a “apropriação” do eu.
Navarro (1995) irá distinguir três momentos narcísicos: a) Intrauterino e neonato, em que o feto teria um primeiro modelo de narcisismo, que estaria condicionado à biologia, à fisiologia e a um forte instinto de autopreservação; b) 9º mês de vida, fase em que a criança estaria adquirindo mobilidade neuromuscular e; c) 2 anos de vida, momento em que a criança tem maior intencionalidade neuromuscular, maior controle sobre seus movimentos.
Como o narcisismo está ligado ao auto investimento libidinal, ao ganho de autonomia, de mobilidade e motilidade, é bem comum que se forme um traço caracterial relacionado à sedução, afinal, a criança em movimento tende a atrair a atenção dos cuidadores primários. No traço narcísico a sedução tem um sentido de assumir poder – controlar – e não de ganho de potência – capacidade de se entregar (NAVARRO, 1995).
Seguindo para andares mais inferiores, chegamos ao diafragma e demais músculos, órgãos dessa região (5º segmento). Talvez uma das maiores contribuições feita por Reich seja a sustentação de sua tese sobre o masoquismo, que tem íntima ligação com esse andar corporal. Enquanto Freud confeccionava sua teoria da pulsão de morte para justificar o funcionamento masoquista, Reich, fundamentado nos acontecimentos sociais e na observação clínica, sonoramente conclui que o masoquismo é uma
reação secundária, porque o indivíduo reprimia os movimentos secundários que pudessem desencadear uma descarga energética orgástica, como mecanismo natural da sexualidade genital. Praticamente, não há uma tendência biológica desprazer, como presumiu Freud e o masoquismo é a reação ao medo de morrer (NAVARRO, p. 71, 1995).
Em outras palavras, para Reich, o masoquismo não vem de uma pulsão de morte ou de uma determinação biológica de destruição, mas das condições materiais, sociais, culturais e econômicas que o sujeito está inserido. Podemos assim intuir que o masoquismo é uma caracterialidade, como todas as demais, advinda da interação do organismo (humano) com seu meio.
A problemática da caracterialidade masoquista, nos demonstra Navarro (1995), está na condição de que o sujeito masoquista vive uma angústia orgástica, já que a excitação é experimentada por ele como desagradável e assim, transforma prazer em desprazer.
Navarro (1995) também considera que pode haver no masoquismo componentes sádicos, mas isso não é uma regra. Elenca três aspectos masoquistas que demonstram um traço sádico: sadismo oral (sadismo fascista: necessidade de morder, de destruir), sadismo anal (sadismo nazista: necessidade de pisar, esmagar) e sadismo fálico (necessidade de perfurar). O sadismo aumenta a ansiedade, trava o diafragma, aumentando assim o sentimento de culpa e a expectativa de punição (NAVARRO, 1995). Com isso, a equação do caráter masoquista se equaliza, já que com o quarto nível bloqueado, sentir prazer se torna uma tarefa.
A caracterialidade anal, segundo Navarro (1995) pode gerar nos sujeitos, uma necessidade de ordem, que, quando extremada, se torna uma obsessão. É comum também o bloqueio ocular, que contribui para uma tendência à racionalização; bloqueio oral, que leva o sujeito a ter explosões de raiva; bloqueio nasal, que gera um comportamento mais introvertido.
O interessante é que nesse capítulo o autor lança mão do termo “cobertura” caracterial, isso porque em sua somatopsicodinâmica, a estruturação do organismo se dá a partir de um núcleo (psicótico, duplo psicótico, depressivo, histérico, entre outros) e esse será coberto por outras caracterialidades (compulsiva, fálica, narcisista, entre outros), a depender biografia de cada um. A função de uma cobertura caracterial é manter o núcleo, de modo que este não entre em colapso, garantindo assim, o funcionamento, ainda que encouraçado do organismo. O edifício humano, vai ganhando mais complexidade, camadas, núcleos, andares e coberturas.
Chegamos nos andares mais inferiores do edifício humano, onde percebemos um pouco mais de estrutura e certa mobilidade da caracterialidade. Temos aqui outro tipo de cobertura: a fálico-narcisista, nos homens e, hístero-clitoridiana, nas mulheres. Seriam os tipos fálicos e histéricos, que se originam por volta dos 03 anos de idade, momento em que a criança encontra nos genitais um prazer autoerótico.
Há uma ligação entre o pescoço (3º segmento) e a pélvis (7º segmento), comum nas psiconeuroses caracteriais. Tendem a uma hipergonia desorgonótica, nos 3º, 7º e também no 6º segmento, o que leva a uma atividade sexual “exagerada, causa de uma condição pseudogenitalidade” (NAVARRO, 1995, p. 81).
As caracterialidades fálico-narcisista e hístero-clitoridiana, advém em pessoas que geralmente vivenciam uma sexualidade do tipo sádico-agressiva, tendo na região genital, um instrumento de poder, dominação e vingança; como descreve Navarro (1995) “o pênis não é um órgão de contato, de comunicação, de fusão, mas equivale a um instrumento de vingança […] Aqui está a diferença entre uma pélvis agressiva e uma amorosa” (p 83). São pessoas que comportam certa superioridade, tom de arrogância e atitude felina, o que pode levar também a uma demonstração de potência sexual, mas esta, é uma defesa contra a própria angústia de castração (NAVARRO, 1995).
Ainda nos últimos andares do edifício humano, encontramos também a caracterialidade hístero-vaginal e fálico-histérica, que têm sua formação datada geralmente no período edípico, gerando um bloqueio na pélvis. Temos aqui uma caracterialidade, como dito antes, com mais estrutura e mobilidade, o que leva Navarro (1995, p. 87) a afirmar que esta seria a “antecâmara da genitalidade” ou seja, de um caráter quase maduro. São pessoas que demonstram um humor volúvel e com variações, sendo inconstantes e com um tipo de amnésia infantil e fantasiosas. Navarro relembra Ferenczi que entendia o tipo histérico como aquele que “genitaliza tudo, pois tem uma carga de tensão sexual não elaborada” (NAVARRO, 1995, p. 88).
Por fim Navarro (1995), quase que de forma poética nos aponta que
o oral faz amor para compensar; o compulsivo faz amor por sadismo; o fálico faz amor para vingar-se; o masoquista faz amor para relaxar; o histérico faz amor para gratificar-se; o genital faz amor para abandonar-se, para doar-se (p. 89).
Apesar de separar em tipos caracterológicos, Navarro (1995) nos alerta que “um caráter puro não existe, que é sempre resultado de uma estratificação: em qualquer aspecto caracterial, se for retirada uma camada, imediatamente se encontra outra” (p. 62).
Podemos concluir que Navarro (1995) faz uma construção bastante didática e profunda das caracterialidades, demonstrando que as frustrações ao longo do desenvolvimento, levam à formação de traços, núcleos e coberturas caracteriais e que há mais complexidade que simplismo nesse jeito de fazer uma clínica.
Um ponto importante também para findar esse trabalho, é evidenciar que Ferri (2022) nos deixa claro a importância de que o terapeuta consiga compreender o desenvolvimento ontofilogenético do indivíduo na flecha do tempo neguetrópico e tenha habilidade para propor intervenções, afinal um dos objetivos de uma clínica psicorporal é “reequilibrar a balança “vago-simpática” do sistema neurovegetativo, mas também reequilibrar o triálogo dos neurotransmissores principais: Dopamina, Noradrenalina e Serotonina” (FERRI, p. 39, 2022).
Chegamos ao fim da nossa caminhada pelo edifício humano, estudando a composição das estruturas, andares, núcleos e coberturas, entendendo a importância de, cada vez mais, buscarmos atualizar e ampliar os conceitos e manejos na clínica psicorporal. Somos sim um edifício humano, não estático, de concreto, mas de carne, ossos, afetos e energia, que se coloca em movimento, em contato, em respiração com o mundo e isso, por si, nos modifica.
REFERÊNCIAS
FERRI, Genovino. O tempo no corpo: Ativações corporais em Psicoterapia. Apresentação Maria de Melo. 1ª ed. – Curitiba: Appris, 2022.
MELO, Maria de. In: FERRI, Genovino. O tempo no corpo: Ativações corporais em Psicoterapia. Apresentação Maria de Melo. 1ª ed. – Curitiba: Appris, 2022.
NAVARRO, Federico. Caracterologia pós-reichiana. São Paulo: Summus, 1995.
SANT’ANGELO, Luiz Guilherme; VOLPI, José Henrique. O edifício humano: entre núcleos, andares e coberturas. In: VOLPI, J. H.; VOLPI, S. M. (org.). Revista Científica Eletrônica de Psicologia Corporal. Curitiba: Centro Reichiano, 2024. v. 25, p. 21-27. ISSN 3086-1438. Disponível em: https://centroreichiano.com.br/revista-cientifica-eletronica-de-psicologia-corporal-vol-25-ano-2024/. Acesso em: _____.