PERTURBAÇÕES NO DESENVOLVIMENTO PSICOAFETIVO E SUAS MANIFESTAÇÕES CORPORAIS
Lorena Magalhães Fraga (1)
Jose Henrique Volpi (2)
RESUMO
O modo como o ser humano experimenta as etapas do desenvolvimento psicoafetivo, desde a concepção até a idade adulta, molda não apenas o seu funcionamento psicológico, como também afeta diretamente o corpo e suas funções biológicas. Compreender a integração dinâmica entre mente e corpo contribui para a restauração do equilíbrio perdido entre ambos. Este trabalho se propõe a descrever o impacto das perturbações no desenvolvimento psicoafetivo, bem como os consequentes bloqueios energéticos e emocionais causados por situações estressantes ao longo da vida, sobre o corpo e o comportamento humano, na visão reichiana.
Palavras-chave: Corpo. Energia. Psicossomática. Reich. Vínculo.
Publicado em: 07/10/2024
Páginas: 53 – 57
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O processo de formação da psique humana tem o seu início no momento da concepção. Segundo Navarro (1996), trata-se de um fenômeno biopsicológico com potencial de causar manifestações somatopsicopatológicas, caso o amadurecimento não ocorra de modo adequado ao longo da vida. Sabe-se que a base para a compreensão da psicologia de um ser vivo é o seu comportamento, que também é um movimento energético, influenciado pelo meio em que o indivíduo se encontra. O psiquismo afeta o corpo e é por ele afetado (NAVARRO, 1996).
Cada criança nasce com um sistema bioenergético moldável, passível de assimilar quaisquer impressões oferecidas de modo contínuo pelo ambiente no qual se desenvolve (VOLPI; VOLPI, 2015). Nesse sentido, o eixo teórico da Psicologia Corporal apresenta a perspectiva de que mente e corpo estão interconectados, a partir da observação do fluxo energético vital no organismo e dos bloqueios a esse fluxo, que se formam como mecanismo de defesa desde o período gestacional, incluindo a infância e a adolescência.
Volpi e Volpi (2014) esclarecem que o corpo abriga todas as histórias vivenciadas pelo indivíduo ao longo da sua trajetória e é esculpido pelas experiências emocionais que as acompanham. O corpo é, portanto, constituído por uma carga energética própria, que pode ser considerada alta (hiperorgonótica), normal (orgonótica) ou baixa (hipoorgonótica). Os autores citam ainda a observação de Reich (1995), que constatou que o corpo guarda em si todos os conflitos emocionais que compõem as experiências biográficas humanas, e é dotado de uma linguagem particular, que se expressa por meio de movimentos, vestuário, tom de voz e postura, dentre outras formas.
Conforme assinala Volpi e Volpi (2014, p. 2), “A gestação é um período de íntimo contato corporal, emocional e energético entre a mãe e o bebê”. Por essa razão, as etapas do desenvolvimento podem ser comprometidas por ocorrências de estresse envolvendo a díade mãe e filho. Os autores esclarecem, contudo, que os comprometimentos não atingem todas as crianças do mesmo modo. Isso porque a fixação da experiência adversa no corpo e no psiquismo é influenciada por diversos fatores, dentre os quais a intensidade e a frequência do estresse sofrido. Além disso, cada criança possui uma dinâmica fisiológica particular, com uma resistência maior ou menor ao estresse (VOLPI; VOLPI, 2014).
O entendimento dos bloqueios psicológicos e emocionais com os seus correspondentes somáticos levou Reich (1995) a mapear o corpo humano em sete níveis de couraças, dispostos horizontalmente e perpendiculares à coluna vertebral, sendo eles: ocular, oral, cervical, peitoral, diafragmático, abdominal e pélvico. Os desequilíbrios funcionais biológicos ou psicológicos decorrem do acúmulo ou do déficit de energia nos segmentos de couraças, o que impede o funcionamento harmônico do organismo e cria condições energéticas favoráveis à instalação das biopatias (VOLPI; VOLPI, 2014).
O desenvolvimento psíquico pode sofrer perturbações ainda no período embrionário, tanto por alterações genéticas quanto por interferências externas, dentre as quais destacam-se os mecanismos endócrinos materno-embrionários, como aponta Navarro (1996). Desse modo, uma gravidez indesejada, tentativas de aborto, intoxicações ou predominância de emoções maternas aflitivas como o medo, impactam o embrião exercendo sobre ele uma ação estressante, que impede o desenvolvimento harmonioso e determina uma condição grave de baixa energia vital. Durante o período fetal, etapa em que o cérebro e o sistema neurovegetativo estão em formação, a psique também pode sofrer alterações no seu desenvolvimento fisiológico, em decorrência de situações de estresse no meio intrauterino (NAVARRO, 1996).
De acordo com Navarro (1996), o amadurecimento cerebral é determinado pela carga de energia do feto e pelo contato deste com o campo energético da mãe. Em condições de estresse, o feto se defende por meio da ativação do sistema nervoso simpático, o qual promove uma elevada secreção de adrenalina, com consequente mecanismo de contração do organismo e bloqueio da livre circulação plasmática e energética. Sendo assim, a contração seguida do bloqueio promove apenas descarga de energia, o que implica numa condição de hipoorgonia, do tipo desorgonótico, em diversos segmentos do corpo (NAVARRO, 1996).
Do mesmo modo que ocorre com o embrião, o feto submetido cronicamente ao estresse materno, perde a ligação energética com o meio uterino e o seu campo energético se torna reduzido. É essa condição de hipoorgonia que possibilita a instauração do núcleo psicótico intrauterino, o qual resultará em excessiva dificuldade de contato consigo e com os outros nas etapas subsequentes do desenvolvimento psicoafetivo (NAVARRO, 1996).
O parto é outro momento crucial para o desenvolvimento psíquico humano. Por esse motivo, situações estressantes ou violentas no momento do nascimento, incluindo o trabalho de parto e os primeiros dias de vida, devem ser evitadas. Navarro (1996) reitera que o estresse do medo do abandono nos primeiros dez dias de vida dificulta o processo de integração dos cinco sentidos, com a consequente formação de um núcleo psicótico. Volpi e Volpi (2015) corroboram a importância dos sentidos (atuando de forma isolada ou em conjunto) e o seu papel na comunicação, uma vez que possibilitam o contato entre o que se encontra no meio externo e o que está dentro do organismo. Os autores defendem também o valor dessa comunicação para o desenvolvimento emocional, visto que “O isolamento sensorial pode provocar danos até mesmo irreparáveis à capacidade de contato com o mundo.” (VOLPI; VOLPI, 2015, p.4).
Corporalmente, o núcleo psicótico se apresenta como um bloqueio hiperorgonótico no primeiro nível (olhos, ouvidos e nariz) e hipoorgonótico no quinto nível (diafragma). Ressalta Navarro (1996) que a presença de um núcleo psicótico no indivíduo pode se exacerbar sob condições de estresse ao longo da vida, adquirindo o potencial de se transformar num quadro psicótico, em que ocorre a perda de contato com a realidade, e o surgimento de sintomas como delírios e alucinações.
Navarro (1996) reforça ainda que, para prevenir a instalação do núcleo psicótico no período neonatal, é imprescindível que as necessidades do recém-nascido sejam atendidas pela mãe. A amamentação, realizada de modo satisfatório, com um bom vínculo entre mãe e filho, por período de tempo suficiente (do momento do nascimento até o oitavo ou nono mês de vida), também é essencial para a prevenção do núcleo psicótico na visão de Navarro (1996).
De modo contrário, se o vínculo simbiótico entre mãe e filho for experienciado de modo frustrante no período neonatal, ocorre o surgimento do núcleo psicótico neonatal extrauterino, como assegura Navarro (1996). Significa que um processo de amamentação e desmame deficitários, do ponto de vista qualitativo ou quantitativo, implicará numa experiência de frustração emocional e afetiva para o bebê, que se apresentará como um núcleo psicótico distímico (borderline), caracterizado por uma condição de carência afetiva e personalidade dependente. O núcleo psicótico distímico pode ser exacerbado ao longo da vida, em consequência de condições estressoras, principalmente aquelas relacionadas a separações e perdas, ocasionando o refluxo da energia do segundo nível (boca) para o primeiro nível (olhos), com oscilações comportamentais entre estados maníacos e depressivos como resposta (NAVARRO, 1996).
O período pós-natal (do desmame até a puberdade) é marcado pelo desenvolvimento das funções neuromusculares ativas, determinantes para a formação do caráter ou da caracterialidade. O bebê passa a usar a musculatura de forma voluntária e intencional para responder aos estresses emocionais ocasionados pelo meio externo (NAVARRO, 1996). Vivências emocionais que impactem negativamente o desenvolvimento satisfatório nessa etapa, enfatiza Navarro (1996), criam a condição para o surgimento das psiconeuroses:
Como assinalou Reich, o período comporta uma problemática que o indivíduo resolverá mais ou menos bem antes de entrar na puberdade (período pseudogenital). A solução válida para a fase edípica abre a porta para a maturidade caracterial, ou seja, para o caráter genital; uma solução edípica precária ou inválida se transforma em um complexo edípico, provocando características psiconeuróticas da personalidade. (NAVARRO, 1996, p.26).
Navarro (1996) destaca que o modelo de educação vigente, moralista e punitiva, impede o processo natural de formação do caráter genital (maduro). Contrariamente, as experiências de castração da expressão saudável da sexualidade, sobretudo no período da puberdade, levam à estruturação de uma caracterialidade de cobertura, como mecanismo de defesa. A cobertura caracterial psiconeurótica, ancorada corporalmente no pescoço (terceiro nível) e no diafragma (quinto nível), pode se desenvolver também sobre uma estrutura psicopatológica intrauterina ou neonatal preexistente.
Após a puberdade, inicia-se o processo de formação da caracterialidade neurótica, a partir das vivências emocionais e existenciais que geram ansiedade e o medo de não viver em plenitude, fixando-se corporalmente no diafragma (quinto nível) e na pélvis (sétimo nível). Salienta Navarro (1996) que, no âmago da condição neurótica, se encontra o medo da entrega completa ao orgasmo, sempre acompanhado de uma ansiedade autodestrutiva, cuja manifestação é consequência da repressão individual, imposta pelo superego, para atender às exigências socioculturais. A cobertura caracterial neurótica se estrutura na personalidade que alcançou uma solução minimamente satisfatória para o Complexo de Édipo, uma vez que a resolução completa desse conflito é coibida pela culpa, tão presente e estimulada em nível cultural (NAVARRO, 1996).
A Terapia Corporal Reichiana, abordagem psicoterapêutica que atua sobre a mente, emoções, corpo e energia, desenvolvida pelo médico austríaco Wilhelm Reich (1897-1957), tem por objetivo a flexibilização das couraças musculares, bem como a restauração do fluxo energético saudável do organismo para que o indivíduo possa alcançar um estado de maturidade e integração psíquica e somática. A esse respeito, Volpi e Volpi (2015) salientam:
Em se tratando das doenças emocionais, os recursos ainda são escassos, e a valorização desse tipo de trabalho ainda é pequena. Há uma série de questões que precisam urgentemente ser modificadas no âmbito da educação, da ecologia e da saúde emocional, se ainda pretendermos um dia ter um mundo composto de pessoas mais humanas, mais afetivas, mais equilibradas. E essa prevenção deve começar antes mesmo da concepção, orientando os futuros pretendentes a pais sobre suas responsabilidades com o filho e com o mundo. (Volpi; Volpi, 2015, p.1).
Considerando-se o impacto das experiências adversas para o desenvolvimento psíquico e corporal humano, desde a concepção até a idade adulta, torna-se evidente a relevância do trabalho terapêutico sobre os bloqueios que impedem a livre circulação do fluxo de energia vital, cujo resultado se manifesta em maior capacidade de regulação emocional e melhora da condição de saúde física e mental.
REFERÊNCIAS
NAVARRO, F. Somatopsicopatologia. São Paulo: Summus, 1996.
REICH, W. Análise do caráter. São Paulo: Martins Fontes, 1995
VOLPI, José Henrique; VOLPI, Sandra Mara. Vivenciando as etapas do desenvolvimento emocional e mapeando as emoções no corpo humano. In: VOLPI, José Henrique; VOLPI, Sandra Mara. Psicologia Corporal. Revista Online. ISSN-1516-0688. Curitiba: Centro Reichiano, Vol.15, 2014. Disponível em: http://centroreichiano.com.br/artigos-cientificos/ Acesso em: 21/09/2024.
VOLPI, José Henrique; VOLPI, Sandra Mara. A prevenção da neurose como melhor caminho para as crianças do futuro. In: VOLPI, José Henrique; VOLPI, Sandra Mara. Psicologia Corporal. Revista Online. ISSN-1516-0688. Curitiba: Centro Reichiano, Vol.16, 2015. Disponível em: http://centroreichiano.com.br/artigos-cientificos/ Acesso em: 21/09/2024.
FRAGA, Lorena Magalhães; VOLPI, José Henrique. Perturbações no desenvolvimento psicoafetivo e suas manifestações corporais. In: VOLPI, J. H.; VOLPI, S. M. (org.). Revista Científica Eletrônica de Psicologia Corporal. Curitiba: Centro Reichiano, 2024. v. 25, p. 53-57. ISSN 3086-1438. Disponível em: https://centroreichiano.com.br/revista-cientifica-eletronica-de-psicologia-corporal-vol-25-ano-2024/. Acesso em: _____.