A VEGETOTERAPIA ONLINE
Jean-jacques Scherer Peres (1)
Jose Henrique Volpi (2)
RESUMO
Este trabalho versa sobre a experiência clínica particular do autor com o atendimento em vegetoterapia a partir de um cenário remoto, uma distância que, se bem trabalhada, pode não significar ausência de contato entre terapeuta e paciente. A existência do atendimento remoto, em todas suas contradições, é uma realidade inegável da qual dificilmente escapara qualquer praticante de técnicas psi que tenha começado seu trabalho após a pandemia da COVID-19. Destarte se deprendem uma série de adaptações para que a potência de um espaço terapêutico se faça presente, não suprimindo a necessidade de um setting, mas compreendendo que este espaço, na verdade, é uma relação, e restituindo o olhar para a mesma.
Palavras-chave: Atendimento Online. Navarro. Pandemia. Vegetoterapia.
Publicado em: 08/04/2024
Páginas: 3 – 7
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INTRODUÇÃO
Em 2020, o mundo foi abalado por uma das maiores catástrofes de saúde da história moderna: a pandemia da COVID-19. Só em território brasileiro foram mais de 700 mil vidas perdidas, para além dos efeitos colaterais de uma economia em frangalhos, demissões em massa e é claro, o isolamento social (plenamente justificável à guisa das circunstâncias). Neste cenário, todos os profissionais da saúde foram mobilizados à sua maneira, mas talvez os que mais lidem com reflexos a longo prazo sejamos nós, psicólogos, terapeutas, agentes do cuidado e do acolhimento.
É incontornável nos debruçarmos é claro sobre a experiência do luto coletivo, uma realidade cindida quase universalmente entre um antes e um depois do dia 26 de fevereiro de 2020, data do anúncio pelo Ministério da Saúde, do primeiro caso do novo coronavírus. De lá pra cá é quase impossível encontrar um paciente que não remeta àqueles quase dois anos de verdadeiro cativeiro emocional: a ausência do toque veio se somar às já presentes surdez afetiva e cegueira no contato. Nos defrontamos com nosso próprio abismo de ruas abarrotadas de gente onde não apenas ignorávamos a existência do outro como fazíamos esforço nesta ignorância.
Cercados e cerceados em nossa própria existência, os consultórios psicológicos se tornaram abrigo, embora já não tivéssemos as balinhas da sala de espera, o chá ou o cafezinho de boas-vindas, e o que de fato existia não era mais do que luz e som numa tela de algumas poucas polegadas. O atendimento remoto é forjado no caos da pandemia, e num campo tão divergente e contraditório como o dos saberes psi, coube ao Conselho Federal de Psicologia uma tentativa de regulamentar esta gama de trabalhos por meio da Resolução N° 4 de 26 de março de 2020.
Neste momento, associações centradas em diversas correntes teóricas se empenharam na discussão de como se adaptar a esta realidade: psicanalistas, psicodramáticos, terapeutas cognitivos, analíticos, onde quer que houvesse dois psis, a discussão entrava em cena. Porém era tarefa dos psicólogos corporais, dos vegetoterapeutas, dos orgonomistas compreender onde e como encaixar o corpo naquela tela luminosa. Este artigo se apresenta a partir da experiência de um psicólogo corporal em formação que teve sua formação acadêmica enquanto psicólogo atravessada pela pandemia, desde o princípio se vendo imerso nessa realidade virtual, e busca explorar as contradições da vegetoterapia online, compreendendo estas não enquanto um limite, mas enquanto um motor que alimenta nosso trabalho.
O SETTING: O TRABALHO EM CENA E O ENCENAR DE UM CONSULTÓRIO
A primeira grande questão a se trabalhar é o “enquadre do setting terapêutico” a partir de um espaço que foge do controle do terapeuta e mesmo do paciente por vezes: este enquadre passa a ser onde o paciente está, e a depender da função que nossa relação terapêutica assume, este local tem alguns requisitos por cumprir. O paciente pode ter grande sensibilidade à luz e precisar de um ambiente em lusco-fusco para se sentir confortável, como numa maternagem, mas ele pode estar também em seu local de trabalho, onde não disporá desta possibilidade (aqui tendo em vista que este também não possa ser atendido em qualquer outro horário). As combinações possíveis muitas vezes fogem a nosso controle, mas devemos solicitar ao paciente que se respeite a necessidade de um ambiente privado e seguro para realizar sua sessão de psicoterapia.
A pandemia e as sessões principalmente quando conduzidas de forma online da casa de pacientes, no entanto, impunham restrições mais drásticas em especial pelo fato de alguns deles, como por exemplo, mulheres e pessoas LGBT sofrerem com diversos tipos de violência doméstica. Nossa responsabilidade diante de tais cenários caminha de mãos dadas com nossas possibilidades de intervenção dada a situação de cada paciente, sempre respeitando a ética profissional que cabe a terapeutas e psicoterapeutas.
O grau de intimidade, porém, que essa modalidade online de atendimento proporciona nos mostra não se tratar apenas de prejuízos, mas fundamentalmente de diferenças. Nunca antes em terapia talvez tenhamos tido a capacidade quase instantânea de acolher uma crise, algo que puxa o trabalho em vegetoterapia, um trabalho rigoroso, a situações de volatilidade muito grande, em especial com a fragilização psíquica de nosso tempo que volatiliza e desorganiza traços de caráter e propicia descompensações. As crises, ataques de pânico, processos dissociativos, todas ganham um caráter muito imediato e cabe também aos terapeutas pensar no que é possível acolher com responsabilidade.
Para além disso, é preciso pensar no quanto de nossa presença alcança ao paciente em atendimento online. O quanto conseguimos desenvolver um laço de confiança real com os pacientes para que eles também se engajem em uma terapia não tão convencional como são a psicoterapia corporal e a vegetoterapia. E neste sentido, o silêncio, que pode ser representado pelo tempo dos actings propostos por Navarro (1996) onde o tempo varia de 15 a 25 minutos, talvez já não seja possível sem um acompanhamento que estabilize o paciente diante da virtualidade, diante da solidão concreta. Não abandonemos os actings do ponto fixo, da boca aberta, nem nossos princípios dentro dos quais estes actings de base são fundamentais, mas saibamos manejar a transferência, propiciar ao paciente que compreenda o fundamento do exercício, sem que isto se torne algo sem sentido, uma penitência. Acompanhar com palavras enfatiza a presença. Defrontar-se com uma técnica como esta é também complexo pelo medo de que o paciente vá embora, especialmente no início da nossa prática, por isso, é importante saber relativizar sem perder o rigor.
ACOLHER SEM VER: A POSIÇÃO DA CÂMERA NOS ACTINGS
Uma coisa que leva nossa prática aos ápices da contradição é a dificuldade no olhar. O olhar do terapeuta reichiano permeia a prática da escuta e análise reichiana. Parte-se da premissa de que, se a voz mente, o corpo não goza do mesmo privilégio, e compreender isso é se colocar numa posição dificultosa, seja no trabalho discursivo, seja nos actings da vegetoterapia: quem pode ficar segurando o celular enquanto faz uma lateralização? Como saber o que está fazendo nosso paciente? Aqui, o primado de Lowen (2020) de que se foca mais na sensação do que na execução ganha um sentido concreto e um contorno de desafio: confiar ao paciente que saberá tirar do exercício aquilo que é fundamental. Os terapeutas mais controladores podem ter dificuldades neste processo de responsabilização e autonomia do paciente.
CONCLUSÕES
A realidade do trabalho online, hoje, ainda é uma realidade pensada no caos (embora não necessariamente no da pandemia), que costuma relegar ao trabalhador a maior parte da responsabilidade por fazê-la funcionar. Vemos isto com trabalhadores de aplicativo, e de certa forma, também nós psis entramos nesta roda, não tanto pela exploração do nosso trabalho, felizmente, mas com certeza pela individualização da responsabilidade pelo trabalho, e no caso da vegetoterapia, isso ganha contornos mais dramáticos, uma vez que o grau de organização entre os profissionais que a praticam é relativamente baixo e inconstante em comparação com outras vertentes da psicologia. É um desafio não perder o rigor diante da miríade de possibilidades que fogem ao nosso controle no atendimento online, para além do isolamento que esta experiência transmite para nossos dias: construir uma relação terapeuta-paciente pode ser um processo muito dificultoso e por vezes demonstrar o caráter solitário de nossa profissão, mas quando surge a abertura e o trabalho se concretiza, sentimos a ponte radiante de nosso trabalho, os campos se unirem, não só entre terapeuta e paciente, mas entre todos aqueles que nos deixaram de legado seu conhecimento: Reich, Raknes, Navarro, Lowen e tantos outros…
REFERÊNCIAS
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução nº 4, de 26 de março de 2020. Dispõe sobre o atendimento psicológico realizado por meios de tecnologias da informação e da comunicação durante a pandemia do COVID-19. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 27 mar. 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-4-de-26-de-marco-de-2020-250189333. Acesso em: 27 fev. 2024.
LOWEN, Alexander; LOWEN, Leslie. Exercícios de bioenergética : o caminho para uma saúde vibrante. São Paulo : Summus, 2020.
NAVARRO, Federico. Metodologia da vegetoterapia caractero-analítica: sistemática, semiótica, semiologia, semântica. São Paulo: Summus Editorial, 1996.
PERES, Jean-Jaques Scherer; VOLPI, José Henrique. A vegetoterapia online. In: VOLPI, J. H.; VOLPI, S. M. (orgs.). Revista Científica Eletrônica de Psicologia Corporal. Curitiba: Centro Reichiano, v. 26, p. 3–7, 2024. ISSN 3086-1438. Disponível em: https://centroreichiano.com.br/revista-cientifica-eletronica-de-psicologia-corporal-vol-25-ano-2024/. Acesso em: _____.